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domingo, 21 de agosto de 2011

ENTREVISTA COM LIA RODRIGUES


 
JULIA GUIMARÃES17/10/2010
Duas décadas de recriações 


Após um hiato de15 anos, a Lia Rodrigues Cia. de Danças volta a se apresentar em Belo Horizonte, pelo Fórum Internacional de Dança (FID). Pioneira na construção da linguagem da dança contemporânea no Brasil, Lia fincou sua sede no Complexo da Maré (RJ), onde desenvolve um trabalho artístico com os moradores da região. Nesta entrevista, ela fala sobre suas duas décadas de trabalho dedicadas ao movimento.
Ao contrário de outros grupos, vocês se intitulam uma companhia de ‘danças’, no plural. Por que? Esse nome foi dado há 20 anos, quando a companhia surgiu. Então, é uma pergunta sobre a qual não penso há bastante tempo. Mas ela é interessante porque tem a ver com as motivações do início. Eu pensava assim: não sei muito bem o que vou fazer, se é dança contemporânea, moderna. Então quis colocar no plural, porque fica mais abrangente, é mais nesse sentido, porque cabem várias danças dentro do que a companhia, naquele momento, pensava que poderia acontecer.
Uma das características mais fortes do grupo é o fato de terem fincado sua sede no Complexo da Maré, a partir de 2003. Como se originou a experiência de estar e criar ali? Eu não concordo que essa seja a marca mais forte da companhia, é um momento importante dentro dos nossos 20 anos. Talvez o mais forte numa companhia de dança contemporânea no Brasil hoje seja a sobrevivência mesmo, talvez essa seja uma característica que compartilho com meus colegas no país. E a gente dá um salto grande porque a mudança para o Complexo da Maré aconteceu depois dos dez anos da companhia, então houve todo um processo de construção antes dessa decisão, que não foi tomada de uma hora para outra, veio a partir de algumas hipóteses que estavam sendo lançadas por mim, em parceira com a Rede de Desenvolvimento da Maré, criada por moradores da região. E, nesse período, em 2003, eu pensava muito em como poderia relacionar a dança contemporânea com parte da população que, na verdade, não teria acesso a isso. Então, eu me perguntava para que a gente faz dança e de que maneira gostaria de continuar a fazer depois de tanto tempo. Nesse momento, a Sílvia Soter, minha dramaturga e parceira de trabalho, me colocou em contato com trabalhos desenvolvidos pela rede na favela da Maré. Aí fiz algumas propostas para dialogar com esses projetos e comecei bem devagarinho, porque você tem que fazer um reconhecimento desse contexto. Foi assim que comecei a desenvolver o projeto e, posteriormente, estabelecer a sede do grupo. E hoje, depois de 7 anos de experiências, estamos criando o Cento de Artes da Maré, no qual trabalhamos desde maio de 2009. E não é apenas nossa sede, mas um espaço de convivência da comunidade, onde também damos aulas de dança.
E como a experiência desse deslocamento geográfico reverbera nos trabalhos atuais do grupoEu acho que o corpo é um estado que muda de acordo com o contexto em que você está. Então, é claro que o fato de estar lá cotidianamente, convivendo e construindo um espaço, isso com certeza irá se refletir na dança que a gente produz. Agora, não saberia explicar em palavras exatamente como isso ocorre, talvez pudesse falar dançando. Por isso, o "Pororoca", que vai se apresentar neste FID, talvez seja a resposta à pergunta que você me fez.
Li que um dos maiores desafios do trabalho na Maré foi superar a lógica da exclusão social, da arte `de gueto´ no trabalho com os jovens da comunidade. Como você busca subverter essa lógica? Acho que primeiro com a atitude de que você vai ali para aprender, em parceria, estou na escuta, estou olhando. O Centro de Artes não foi ideia minha, foi ideia em conjunto com essa ONG formada por moradores e ex-moradores da favela. É um trabalho em equipe, de estar compartilhando ideias e pensamentos. Você precisa entender que lugar é aquele, entrar em contato com outras visões sobre a favela, sobre o que seria inclusão social e tentar praticá-la em conjunto com outras pessoas que pensam também essas questões de uma outra forma. É um longo aprendizado.
Li também que, na sua trajetória, um ponto importante de transformação foi marcado pelo mergulho na obra de Lygia Clark, em especial, pela ideia da artista de "corpo colectivo". O que mudou na sua forma de pensar a dança a partir dessa referência? Há 12 anos, a companhia foi convidada para recriar algumas obras da Lygia Clark, e essa experiência foi marcante para mim ao entrar em contato profunda e fisicamente com a obra dela. Isso, sem dúvida, foi muito transformador para o meu trabalho. Mas não consigo dizer quais seriam exatamente as questões que a Lygia coloca que estão no meu trabalho, porque eu dialogo com outros artistas que também vão enriquecendo minha prática. O Tunga é um outro exemplo, adoro estar perto dele, trocar ideias com ele e participar das performances que ele realiza, assim como outros artistas da dança, como a própria Adriana Banana e o Grupo Corpo, em Belo Horizonte, e, aqui no Rio, tem a Dani Lima, o João Saldanha, só para citar alguns.
Você foi criadora e diretora artística do Festival Panorama de Dança até 2006. Como percebe a cena atual da dança contemporânea no Brasil? O contexto de quando eu fazia o Panorama e o de hoje mudou muito, a dança contemporânea não é mais um deserto como antes. Quando o Panorama começou, em 1992, não tinha quase nada acontecendo. Acho que logo em seguida veio o FID e, hoje, existem outras ações muito importantes para o trabalho da dança, como a Bienal de Fortaleza, que é extraordinária, o projeto do Itaú Cultural, do Sesc Palco Giratório e as universidades de dança. Então, o cenário onde a dança acontece hoje é muito diferente, existe a internet e a possibilidade de redes de informação, tudo isso cria um outro lugar para a dança acontecer. E isso mudou até a maneira como as pessoas dançam, as formas de mostrar a dança. Então, sem dúvida, mudou muito.
Neste ano, seu grupo completa 20 anos. Num balanço reflexivo, o que se mantêm de mais estrutural na linguagem construída por vocês? Eu acho que é a insistência de continuar acreditando que é possível ter uma companhia, estar junto e desenvolver um projeto a longo prazo, trabalhar sete horas por dia, acreditar que é possível fazer outros projetos em dança, isso é o que fica de mais forte para mim. Às vezes, eu duvido disso também, oscilo, porque é tão difícil, parece um modelo que não vai mais dar certo, o de ficar junto por tanto tempo. Mas quero crer que ainda é possível, que devo continuar a trabalhar compartilhando, mas vamos ver o que o futuro vai me dizer.
Durante o FID, o público poderá assistir a quatro espetáculos do grupo: "Aquilo de que Somos Feitos", "Formas Breves", Encarnado" e "Pororoca". Quais são os aspectos desses trabalhos que melhor refletem os 20 anos da cia.? Cada trabalho traz uma ideia, um tema e uma pergunta diferente. Um é uma homenagem ao Oskar Schlemmer e ao Ítalo Calvino ("Formas Breves"). "Encarnado" veio da nossa primeira entrada na favela e, quatro anos depois, fizemos "Pororoca". E vai ser muito bom apresentar no FID porque a gente não dança em Belo Horizonte há 15 anos. Então, estou muito feliz com a oportunidade de festejar os 20 anos nesse festival que eu sempre admirei muito e numa cidade como Belo Horizonte que tem uma forte relação com a dança.
Daniel Euge