domingo, 21 de agosto de 2011

cinema mundo


CINEMA
MARCELO MIRANDA 21/08/2011
O profeta alado ainda grita  
Gritos. Glauber Rocha (1939-1981) aparece em imagem notória, registrada numa assembleia geral da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), na mesma ocasião da foto que estampa a capa do Magazine
"O Terceiro Mundo está de luto". Assim iniciava um dos artigos mais viscerais já publicados na imprensa brasileira. Era 24 de agosto de 1981, e Rogério Sganzerla assinava na "Folha de S.Paulo" o texto "Necrológio de um Gênio", emocionado obituário de Glauber Rocha, morto dois dias antes, aos 42 anos. Amanhã completam-se 30 anos desde o falecimento do cineasta. E o Terceiro Mundo continua de luto.

A lacuna de Glauber jamais foi preenchida. Na verdade, a se considerar o impacto de sua obra e a constante rememoração de seus trabalhos, ele nunca precisou de um substituto. Como diz Joel Pizzini, que trabalhou na restauração de vários filmes do diretor, "não foram 30 anos sem Glauber. Foram 30 anos depois de Glauber".

A imagem icônica do baiano nascido em 1939 no município de Vitória da Conquista nunca foi despregada do olhar e sensibilidade de centenas de brasileiros. Glauber não foi só o realizador de trabalhos fundamentais como "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "Terra em Transe" (1967). Foi também um agitador cultural dos mais ativos.

Controverso, falastrão, excessivo, genial e genioso - ou, novamente por Sganzerla, "concertista-mor, artífice de brilhantes obras cinematográficas, arranjador, encenador e coreógrafo do estranho balé do subdesenvolvimento".

Em 1975, o ensaísta Paulo Emílio Sales Gomes vaticinou: "Glauber Rocha é profeta alado. Ele é uma de nossas forças, e nós, Brasil, a sua fragilidade".

"Glauber trabalhou com os mitos fundadores da nossa cultura, da nossa identidade e do poder", define o cineasta Joel Pizzini. "Seus filmes continuam na ordem do dia, pois o cinema dele aborda questões que ainda não foram digeridas, atravessando vários registros num diálogo contínuo com todas as outras artes".

Para o crítico e pesquisador Ruy Gardnier - que trabalhou como arquivista no Tempo Glauber (leia mais no quadro abaixo) -, a pecha de artista de difícil entendimento (que insiste em permanecer em muitos círculos quando se sequer se pronuncia o nome de Glauber Rocha) aconteceu de repente, de 1970 em diante, a partir do lançamento de "O Leão de Sete Cabeças".
"De um ano para outro, ele perde o status de um dos cineastas mais badalados do jovem cinema de autor contestador (junto com Jean-Luc Godard e Pier Paolo Pasolini, entre outros) e se transforma num diretor de ‘linguagem difícil, árida’, que é como o considerarão, a partir daí, os admiradores de seus filmes dos anos 60", comenta Gardnier. "Era uma tendência, mas a regressão foi brutal. Glauber se radicalizou e o público encaretou".

Celebrações. A efeméride pela partida de Glauber Rocha há três décadas será celebrada amanhã à tarde no plenário do Senado Federal, a pedido da senadora Lídice da Mata (PSB-BA). A mãe do cineasta, dona Lúcia Rocha, 92, confirmou presença.

Em outra homenagem pública, a TV Senado vem exibindo, desde o último dia 7, vários longas-metragens de Glauber, sempre aos domingos, às 21h. Hoje é a vez de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Na semana que vem, passa "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969).



Acervo está com a Cinemateca Brasileira
Faces. O cineasta numa de suas últimas imagens: com problemas nos pulmões, morreu de septicemia
Na última semana, o Tempo Glauber passou por um sufoco. Devido a um erro burocrático, a Secretaria do Audiovisual (SAV) cancelou o convênio firmado para manter a instituição em funcionamento.

Somente na quinta-feira a situação de alarme teve um respiro, quando Paloma Rocha, 51, primogênita de Glauber, recebeu novas informações do Ministério da Cultura. "Temos garantia de manutenção para pelo menos até dezembro. Depois, ainda é incerto", disse ela, que precisou demitir funcionários por conta da confusão da SAV.

O Tempo Glauber é o principal espaço a preservar e difundir tudo relacionado ao cineasta baiano. Localizado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, foi fundado em 1989, depois de árdua batalha de seis anos da mãe de Glauber, dona Lúcia Rocha, no intuito de manter a memória do filho e abrir seus arquivos a quem se interessasse.

Recentemente, a Cinemateca Brasileira comprou boa parte do material do Tempo Glauber, incluindo os filmes e mais 22 mil documentos, entre roteiros, peças, romances e anotações. "É uma maneira de dar sobrevida aos originais e ampliar a difusão, numa data importante como a de agora", diz Paloma. "A memória de meu pai está garantida e tenho o sentimento de dever cumprido". (MM)
Cangaço. Maurício do Valle e Othon de Bastos em cena de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964)

MINIENTREVISTA
Ruy Gardnier
Crítico de cinema e pesquisador do Tempo Glauber
O que ficou ou permanece da passagem de Glauber pela cultura brasileira?
Do ponto de vista da cultura dominante, não permanece basicamente nada. Ideologicamente vivemos uma cultura do consenso, e Glauber Rocha vivia pela controvérsia e confrontação. Vivemos um período racionalista (apesar dos obscurantismos religiosos), e Glauber vivia em estado profético, delirante. No mundo do cinema, também não poderia estar mais longe. A estratégia estatal corrente de dar dinheiro majoritariamente para projetos grandes, com tramas vulgares e linguagem subtelevisiva, certamente lhe daria nojo. Ele acreditava na força do cinema e da arte em geral para friccionar a sensibilidade do espectador através de experiências audiovisuais que ultrapassam as percepções cotidianas.

Qual foi a importância de Glauber para o momento histórico no qual ele atuou?
Ele foi fundamental como cineasta, como ideólogo de cinema, de cultura brasileira e de política. Suas ostensivas ações na imprensa, como articulista ou entrevistado, sempre com declarações bombásticas, o situavam como um pensador original, que não se aliava nem às posições reinantes da esquerda comunista ou ex-comunista nem tampouco às posições da direita. Foi sua ação como ideólogo do Cinema Novo que impulsionou os intelectuais brasileiros a discutir nosso cinema a sério. Como cineasta, Glauber Rocha segue sendo o mais importante que o Brasil já teve. Ele foi o primeiro intelectual brasileiro a apostar na abertura (em vocabulário da época, "distensão") política vinda a partir da presidência de Ernesto Geisel e criou, com suas inserções no programa "Abertura", um verdadeiro fórum para discutir catarticamente sobre cultura e política no Brasil, algo sem par até hoje.

É possível "separar" a obra de Glauber em fases?
É possível perceber uma incrível consistência na trajetória de Glauber, que muda a partir de certas coordenadas, mas sempre baseadas num mesmo tipo de premissa ou clareza de pensamento. Igualmente fascinado por Jorge Amado e pelo formalismo cinematográfico, Glauber desde cedo teve algo de catártico, de operístico, de grandioso em seu estilo e, ao mesmo tempo, acreditava nas experiências de linguagem de modo a friccionar a percepção de seus espectadores. Essa primeira parte era o que consistia o "épico", e a segunda o "didático" do modelo "épico-didático" que ele tanto admirava em Brecht. Mas claramente existe uma intensificação, ou um radicalismo, a partir de 1969.

Seria possível imaginarmos Glauber Rocha no cinema brasileiro de hoje?
Não. Mesmo os grandes cineastas contemporâneos que poderíamos longinquamente associar são bastante civilizados. Glauber tinha um componente de selvageria, de violência da linguagem, que inexiste no cinema de hoje. Mas, também, os tempos são outros.



CONVIVÊNCIA
Eduardo Escorel relembra parceria com o baiano na montagem de filmes
Dos filmes que tornaram Glauber Rocha um nome internacionalmente conhecido, "Terra em Transe" e "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (ambos premiados no Festival de Cannes, com troféu de júri da crítica e melhor direção, respectivamente) foram feitos no Brasil; "O Leão de Sete Cabeças", na África; e "Cabeças Cortadas" (1970), na Espanha.

Todos os quatro filmes - cuja evolução de um a outro marca uma ruptura dentro da obra de Glauber - foram montados por Eduardo Escorel.

Aos 66 anos, o paulista radicado no Rio de Janeiro é um dos nomes mais importantes em atividade no audiovisual do país. Ele teve um breve primeiro contato com Glauber em 1962, quando o diretor já havia feito seu primeiro longa na Bahia, "Barravento". Escorel tinha 17 anos e fazia um curso de cinema.

Tempos depois, ambos firmaram a bem-sucedida parceria. "Voltei a me relacionar com ele, já profissionalmente, em janeiro de 1966, quando fui ao Maranhão fazer o som direto do curta ‘Maranhão 66’, que ele dirigiu", relembra Escorel, que tinha acabado de montar "O Padre e a Moça" (1965), seu primeiro trabalho em ficção, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.

Provavelmente devido a isso (Glauber admirava o filme de Joaquim), Escorel foi convidado a participar de "Terra em Transe".

O período de Escorel e Glauber juntos foi relativamente curto: quatro filmes em três anos. "O Leão de Sete Cabeças" foi montado em Roma (Itália); "Cabeças Cortadas", em Barcelona (Espanha).

Escorel lembra que o processo de montagem de "Terra em Transe", ao longo de seis meses na ilha de edição, foi distinto dos demais, tanto na presença mais maciça de Glauber quanto na maneira de o cineasta organizar o filme.

"Havia um campo aberto para experimentar, fazer tentativas e traçar caminhos. O Glauber sempre queria inventar alguma coisa. O roteiro era um filme, a filmagem se tornava outro filme e a montagem criava um terceiro, bem diferente".

Para o montador, algo que fazia de Glauber um artista era a insatisfação e a recusa com as formas narrativas convencionais. "Ele estava sempre buscando algo que fosse transgressivo e contra os padrões". (MM)





Glauber Rocha essencial: os filmes que você precisa ver para entender o cineasta


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